Luciano Aguiar

O VOTO DO SEU HERMES

Seu Hermes, o português de uma cabeleira vistosa, integralmente branca, dono de uma mercearia de secos e ensopados bêbados, madrugava em cima dos trilhos da Francisco de Menezes, raspando o forro das gaiolas do caboquinho e do curió. Dona Biu, sua companheira, cabocla sardenta, acordava de vassoura e balde na mão. Os primeiros clientes não chegavam com o olho do dia; dormiam mijados na calçada da venda, bebericando sonhos de garrafas vazias.
Como as lapadas, as conversas também eram fiadas no caderninho de memória de seu Hermes. O apito intercalado da Maria Fumaça dava a cadência do gole; as pingas desciam goela abaixo e, com o vai e vem dos cotovelos, o balcão brilhava como catarro na parede.
Dos vereadores no assunto, Bananola era o mais astuto e falante. Sonhava em ser político e ajudar o Major a descascar as bananas dos Martírios. Luiz do Guizo chocalhava a própria sombra, desconfiado de um sócio de pantufa. Alfredo Dentinho, fiel ao conhaque de alcatrão, sempre condenava as intenções do Palácio. E Pituca da Vitrola, amante de Altemar Dutra, chorava no primeiro trago e acusava Beatriz, a ruiva, das suas desilusões.
Certa manhã de domingo, Alfredo Dentinho chegou excitado, antes que o alcatrão lhe atingisse o senso:
— Vou beber todas! Estão sabendo do crime do Crispim? Parceiro do Gago... aquele que enterra as pessoas vivas?
O português coçou a cabeça, olhou para Alfredo e disse:
— Formiga não só rói boca de banguelo, Dentinho.
Bananola deu uma risada estridente. O curió chegou às talas em repetições. Luiz acionou o guizo com o dedo mindinho e rosnou:
— Aquele barulho debaixo da cama... agora tá explicado.
Desceu uma pinga e sentenciou:
— Estão escondidos lá em casa.
— Meu Deus! — exclamou seu Hermes — O homem vive a pisar em chifres, a alma é uma tábua de pirulito.
Hermes falava baixinho e ficava perturbado com os rompantes de Bananola, que, antes de atravessar os trilhos aos berros, antecipava-se no tilintar das garrafas:
— Uma carteira de Continental sem filtro! O protético que dá suas baforadas, seu Hermes!
Muitas das vezes, Bananola tirava-lhe a paciência, ao ponto de o embrulho do pão crioulo, numa tira de papel, não pegar nó.
Num desses dias, o português resolveu ouvir os bêbados, mastigando o tema: eleição municipal. Inquirindo Pituca, soltou o verbo a respeito da candidatura de Dr. Tibúrcio à prefeitura, com uma pergunta flechada:
— Apaixonado, responda-me uma intuição: Tibúrcio é ou não um canalha vestido de bom moço? Bom médico de Beatriz?
Pituca sentiu a fisgada e viu o guizo de Luiz tremer-lhe as coronárias. Palitando o riso, Alfredo saiu em defesa de Pituca:
— Não, seu Hermes. Dr. Tibúrcio é veterinário.
Bananola deslizou os cotovelos, resmungou um riso falado:
— Beatriz é uma vaca profana, seu Hermes?
Pituca começou a chorar em goles sucessivos.
— Dr. Tibúrcio é aplicado nas ciências políticas, seu Hermes — afirmou Bananola.
— Eu sei... o homem é bom em exatas... na divisão do bolo, só deixa a casca.
Todos riram, menos Bananola, que respondeu na bucha:
— Mas calçou a cidade toda de pedras portuguesas.
— Aí foi muito fácil! — intrometeu-se Dentinho — Dr. Tibúrcio usa cromo alemão.
Luiz do Guizo elevou mais uma dose e adentrou no diálogo:
— Já vi esses sapatos debaixo da cama... pisa macio.
Fora do seu jeito pacato, seu Hermes continuou instigando as cobras de farmácia:
— Dr. Tibúrcio — disse o português — é afeito a um troco. Trabalhou nas lotações como cobrador, carregava o dinheiro entre os dedos... uma intimidade extraordinária... Eu sei que vocês votam no canalha do Tibúrcio.
— Eu voto no coroinha, o Hércules! — afirmou Luiz do Guizo — Hércules é um homem do povo.
Bananola cuspiu a do santo e entrou pesado:
— Hércules é um profano... só pensa no alheio... não pode ver um jarro!
— Sigo o voto do seu Hermes! Voto no Baixinho do Alçapão... sabe comandar... empurra da ponte o excedente! — afirmou Alfredo Dentinho.
— Seu Hermes, que baixinho, Dentinho?
— O vereador de cinquenta mandatos, seu Hermes.
— Eu lá pego bigu em caçamba, Alfredo Dentinho! Esse sabe gastar prego dos outros... anda de martelo nos quartos!
Do inesperado surge a tréplica. Pituca puxa o lenço, enxuga os olhos e afiança com ares de deputado no assunto:
— Voto no Luiz.
— Que Luiz é esse? Vocês sabem? — perguntou seu Hermes.
Pituca não deu fôlego:
— Luiz Carlos Prestes. Beatriz enlouqueceu o homem.
— Prestes foi constituinte em 46, Pituca. A eleição é pra prefeito!
Bananola gargalhou, como sempre, e disparou:
— Pituca é voto nulo, seu Hermes.
Dr. Tibúrcio é canalha, Hércules é um profano, Prestes é voto nulo e o Baixinho do Alçapão é caçambeiro.
— Não é isso, seu Hermes? — perguntou Bananola, emendando com uma pergunta nada confortável ao bodegueiro:
— O homem Hermes vota em quem?
Pegou-o de surpresa. Seu Hermes desconversou e chamou dona Biu com o assovio conhecido de todos:
— Biu, vou ter que assumir o voto... não posso ficar desmoralizado pelo fiado... e agora, o que faço?
— Desconverse. Não assuma o voto no canalha.
— Como?
— Bananola é esperto... vai chacoalhar... vai espalhar no bairro.
Bananola percebe Seu Hermes desconcertado e aplica um golpe de mestre, para a felicidade de todos: — Vamos seguir o voto do Seu Hermes! A conta de hoje é por conta do Canalha...
COMENTÁRIOS